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terça-feira, 8 de junho de 2021

 




A Peste de Pã

 

tirado do cínico sono

que antecede o sol cruel

em manhã sem data certa

rasgada no calendário

cachorros sequer latiam

só o arranhar de rodas

no asfalto estremecido                               

e um murmúrio humano

nunca antes ouvido

fezme ir à janela e

abrisse num gesto duro

e o que vi mudo e cego

 

transitam macas de ferro

levam em plásticos clínicos

azuis rubros roxos pretos

figuram restos mortais

de gentes remotas

milhares de féretros

empurrados nas ruas

por máscaras e múmias

coração veias estampidos

pólvora de todo o povo

o horror vestia trapos

tranqueime em estopa

 

nosso teto tremulava

os livros esfarelavam

as paredes pingavam

um sangue exangue

obrigame a fugir de cena

abrigarme debaixo da pia

imagina tocar a flauta de Pã 

bato os chifres no muro

o bambu me fere a boca 

os caniços sopram lamúrias

a constelação explodeemdor

estertoramos amigos meus

a bordo do navio à deriva

jogar os fantasmas no mar

ondulantesdetudoqueénada


(foto da agência AFP)


Celso Araujo, 06.06.21. BsB       

quarta-feira, 22 de maio de 2019


foto de autor desconhecido

coleta


Lave as mãos
despertador começa assim
choque de sonho sopro e sintoma
banheiro vaso espelho chuveiro 
ainda sonado e ainda acordado
persiste a tontura terna da manhã
na praia mulheres de maiôs e bobes
exalam perfume sândalo de phebo
e riem púrpura provocação do mar

meus pés entram na nave eclesial

inundada de água benta da pia 
e logo ao lado o cemitério frio
fotos dos que faleceram vendidas 
por padres em molduras de andor

sinto uma dor no ouvido da memória 
deixei duas mochilas em algum lugar
uma mochila que já carregava comigo
outra abandonada por alguém no parque
enquanto tocam sinos de bronze barroco 
homens urinam em risos na fonte de feras
mulheres abrem os sutiãs de seda e seios

jorram leite e mel em cajus e castanhas

Exponha a glande e mantenha o prepúcio retraído
Lave com água e sabão enxague com água em abundância
sigo mecanicamente as instruções mas me nego 
a apagar o que a noite forjou nos rins e pulmões 

uma menina diz meu nome uma garota doida é tudo

seus dreads dançam na atmosfera agradável de úmida
moleques me tomam os brinquedos e os lançam no lixo
a garota cheirando a chicletes adams e incenso de xamã
a manhã a cada manhã é mais diversa que a primeira
proíbo-me de esquecer o sonho antes que se vá no mijo
em jejum é sempre melhor retomar as asas noturnas    
Enxugue com uma toalha de pano limpa ou papel descartável

encontro gente conhecida no cemitério

vejo retratos atrás do altar passa um rio
perco as mochilas volto correndo na areia
e as descubro debaixo das folhas febris
oh serras leves oh ladeiras lubrificadas
a felicidade é tamanha são tantas as belas
na antesala de tevê ligada imagens de dementes 
e logo escombros da noite bombardeada de gaza

Despreze o primeiro jato de urina no vaso sanitário

debaixo da mangueira cheia de galhos e frutas
um casal entre a sombra e o sol beija extático
Sem interromper a micção coloque o frasco de coleta na frente do jato urinário e colete entre 20 e 50ml de urina Evite tocar na parte interna do frasco

é uma ventura que não cessa de suspensas atrações

tudo pode ser levado só o que alcanço com as mãos
o pensamento jorra em jatos de desenho de sabão
microplásticos invadem pela fresta do basculante    

a manhã dá sinal de alerta com o sol e os cães violentos
vigilantes além das câmeras de registro em operação
é hora do banhar-se enxugar-me vestir-se calçar-me
verificar o gás e o vazamento de água o celular no ar
Despreze o  restante da urina no vaso sanitário
Transfira a urina para o tubo de ensaio até enchê-lo
adequadamente. Despreze a urina que ficou no frasco
de coleta O material deve ser enregue no laboratório
dentro de 2 horas após.....
que saco sequência de comum soando nesse dia   

cruzo a quadra arrastando a perna direita travada

com a proveta na recepção devidamente enluvada
etiquetada pela atendente atrás de um vidro azul
subo as escadas para o exame a investigação
a enfermeira tira o sangue e me faz bem
dispensado registro feito por toda razão
meus irmãos pagaram a cara pesquisa
crianças que chegam com suas mães
choro e pão de queijo cadeiras e chás

desempregado desalentado só me resta ligar

no foda-se e aguardar o resultado no site
deixando pra trás a baixaria imaginada de
mim e acreditar que essa foi a urina sonhada
e por isso filtrada desse tormento noturno
que orquestrou sonatas dodecafônicas na cama 
autodescontrole começa assim



quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




desenho de Millor Fernandes/2016


embolada à toa



é horrível de se ver
a armação do ministério
esplanada fatiada
sangria de fake império
gabinetes marionetes ação 

embaralhar embolada
é a palavra desordem
o rato se faz dragão
extermina o que existe
por incontinência de cão    

avesso do avanço desterros
índio vira raiz negro puncake
mulher domesticada homem
armado de erros enfurecidos
crianças à distância dopadas 

desenha-se em sangria a dor
adormecida consciência geral
ado ado cada um seu quadrado
fudeu tudo menos lutar pelo todo
eliminar essa cruzada só distopia 

quinta-feira, 29 de novembro de 2018


Fernando Eiras em Dias de Nietzsche em Turim, de Julio Bressane


relato conjugado 


não acredito que os cães
ladram por eu passar frente
às suas prisões domésticas

não acreditas que moras
na satélite apagada morna
pagode vingativo vazando

não acredita nas medidas
torpes provisórias e fascistas
escabrosas do fudido golpe

não acreditamos em desfechos
em defeitos de roteiros e vingança
desastres desgraçados na democracia

não acreditais nos tais vulgares
momentos de canais sanguinários
soberanas são ficções da pós-história

não acreditam na fúria disseminada
em mísseis (teatro) de operações  
em mitos e desvelos perversos

os verbos não servem mais como tema
se conjugados no passado no presente 
no futuro escuro ou apenas no cinema

segunda-feira, 5 de novembro de 2018



imagem do google



balada de cigarras


o que dizem as cigarras
em compassos binário
ternário quaternário

partitura de chiados
o que pedem as cigarras
ocultas nas árvores

elas querem mais chuva
águas em jorro de espanto
meu pranto de humano

adiantam as dores
antecipam aurora alva
as cigarras desta hora

os códigos antigos
o mundo virtual pausa
voltam a vibrar membranas

c(l)arineta fasculata
no calor os machos entoam
tons para chamar as fêmeas

copulam esvoaça a grávida
e o outro afasta predadores
calam-se os pássaros no canto

ovos postos e as fêmeas nuas 
estouram o corpo a roupa asas
prenunciando o verão descambam

ovos de inseto caem em
formas de ninfas inúmeras
descem por fios de seda

viverão no fundo da terra
letárgicas na caverna 
buscam a seiva das raízes

sobem o tronco molhado
em pouco despedem-se
e despem-se do exoesqueleto

voam aves fundem-se asas
semanas de gozo e estridular
do baixo ventre contraído

a fêmea se quebra e cai
o macho logo a seguirá
e misturam-se às folhas

ninfas afundam no chão
machos e fêmeas são cigarras
as fêmeas cantam no sereno

ar luz metamorfose incompleta
cigarras sinuosas rosas ridentes
na noite aberta que me suporta 

sóis girando sós
em suas galáxias
elípticas elásticas

distância infinita
do cosmos a cronos
para mínima solidão

sopram as cigarras
a canção dos silenciados
em suas poltronas e camas

as cigarras acendem
um beque com os caras
que tocam violão de aço

noite madrugada meio dia
o som avança no asfalto e folhas
a chuva evoca o universo de agonia

os raios e os trovões de longe
e o teto de amianto vazando
em bicas de vozes líquidas   

cada um dos tímpanos explode
cigarra verde cigarra cantorazinha
aqui peço licença pra risandar    


quinta-feira, 20 de setembro de 2018


sem título/óleo sobre tela/Ismael Nery/site da UFJF,MG.


misererê


vamos pedir misericórdia
não miséria nem opressão
sim à compaixão do blue 

vamos chamar a concórdia
não de acordos por medo
sem os acordes desterros

o azul em desmaios tons  
vamos pedir a esperança
miserere em anchos cantos

vãs noites estações vulgares 
dias únicos em poucas horas
e riso flores incensos rosas

a serem encontrados agoras
abram espaços nos impasses
sejamos exatos nos compassos

ou não sejamos mesmo em cacos
quebrados galhos fazendo música 
do caosmos barulhante brilhento

a história disfarçada de verdade
veste negro espartilho de velcro
é atriz tragicômica fora do foco

memória não é mares de lama
a educação dos sentidos clama
não é pra humano algum conceber 
nação
em chamas
cinzas
muda 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018



Tarsila do Amaral/série Antropofágica


a jaula


estou na jaula de caibro e correntes
jaula que cabe só a mim no quintal
da casa do comerciante comprador
seu contentamento ao me prender
atraiu curiosos vizinhos e pastores

a carne foi lançada quando o sino
bateu às seis da tarde dos anjos
devorei-a como se fosse de humano
sempre os mirei na floresta da caça
ouvia e fugia dos tiros farejadores
fui capturado à noite corisco trovão
caí depois dum tiro leve de espingarda

a jaula é de ferro e teto de zinco
é quente e fétida tal lajedo ao sol
noites calmas e dias de visitação
sucedem-se morcegos aves cegas
passam no alto de um céu piando

me mostram pros meninos
me mostram pros ciganos
me mostram pros paganos
mulheres de olhos profanos
e eu urrando jorrando pus
pelos olhos de tanto espanto
no entanto cresço a olhos vivos

além de comer dormir e urrar
articulo com as presas e unhas
uma quebra do ferrolho metal
e ninguém percebe ruir ranger
sou ou não sou a onça do sertão
desmontei a ferocidade encenada
quebrei o cadeado na madrugada

foi espavento esparro espessura
quebrei as portas num fôlego só
me joguei nas ruas de pedraria
enquanto dormiam carcereiros
ouvi ainda seus roncos e risos
mas rumei bem veloz ao rio vivo
nadei corrente e profundeza    

a fome era felina e famigerada
aquele dono queimasse a gaiola 
a cidade que fizesse penitência
seus ferozes devoradores de ar
respirassem debaixo de telhados
tolos e felizes como não entendo    

afundei-me nas terras antes minhas
muito de mata de água de lagoa
capoeiras e grutas em que me fui
num penhasco molhado pressinto
aguardam outras feras sabidas do
mesmo furor fúria e florescer ao ser
à toa

sexta-feira, 7 de setembro de 2018


Harold Lloyd no filme Safety Last/1923


calar ou cantar

colapsar ao sopro roído não
digo não ao ridículo
retrato telas ao redor
me empurrando rumo
à tal depressão virtual
girando escrota a rota
das horas implacáveis

levanto-me para alongar
o tronco e os membros
e não sucumbir ao mesmo
ente  indesejável de tempo
ardente em fogo facínora
enquanto a tarde avança
sobre o teto de amianto

foda-se o mundo imundo
sairei dos clichês e focos
quando a cena terminar
com o prazer dos atores
que não se subestimam
sofrem no papel mas lá
no fundo do peito eles
ou elas deliciam outro
o teatro é minha pessoa

coração sejas alteridade
e cantando viverás.

sábado, 1 de setembro de 2018


foto de Tayla Lorrana em expô de Yayoi Kusama/2014


na parada


anjos em andrajos andam de lá pra cá
de cá pra lá buscando ao léu drogas e
talvez um céu para insolúveis paradas
adejares na rodoviária pela via do real

nem percebem que humanos como eu
perecem em sua demente impressão
e sucumbem ao som das máquinas
cortando o concreto mais uma vez

este marco zero da cidade não terá
paz nunca por ser o problema em si
instalado na interminável obra piloto

só mesmo o capiroto pra livrar o plano
da melancolia imensa obscura necrópole
salve lotação que me afasta delinferno     

sábado, 25 de agosto de 2018

artea
arte de Regina Silveira
(com licença e reverência)

algumas escadas

descer escadas
com passos ágeis
nem lentos nem velozes
ao contrário deliciando-nos
desacelerar o pulsar da pulsão
ouvir o acorde de tristão caído
no chão sintético do lugar
evocar a serena dor em dó
sereníssima partitura sopra
instrumentos evanescentes

alice caiu por alegoria
hamlet por obsessão
eu e talvez você ou não
por excesso de realidade
é noite profunda propícia
para o excesso de pranto
lamento em sustenido
de madeira e mármore
de memória membrana
escadas que levam à torre

torre dos sinos de bronze
escadas a subir sem saber
degraus espiralados 
de sentido e destinação
escamas da estrelada Cy
mundo membrana move
ao modernismo tropical
escadas de babilônia babel
escadas da biblioteca viva
de Alexandria incendiada